Por Dorjival Silva
A situação social ainda precária do negro brasileiro tem suas raízes não apenas nos três séculos de escravidão, mas também no próprio processo de abolição. A análise é da coordenadora do Fórum Permanente das Entidades do Movimento Negro de Mato Grosso do Sul, Vânia Lúcia Baptista Duarte.
Para ela, a superficialidade da Lei Áurea, cuja assinatura completa 120 anos hoje, ajudou na constituição das condições negativas da população negra, atestadas pelos indicadores sociais, como os relativos à educação.
A coordenadora lembra que a lei – que apenas determinou o fim da escravidão e refutou as disposições contrárias – não criou mecanismos possibilitadores de direitos de pessoas livres aos antigos escravos. “Os negros não tinham para onde ir e começaram a se aglomerar nas primeiras favelas”, salienta. “Simplesmente extinguiu a escravidão, mas não ofereceu condições para uma vida digna aos negros”, completa.
Além da fraqueza jurídica, a Lei Áurea também foi inócua, segundo Vânia Duarte. Isso porque o dispositivo visava eliminar algo praticamente inexistente no país: a escravidão. “A maioria da população negra já era liberta”, diz.
A assinatura da lei sucede uma série de outras leis, que aos poucos minguam o trabalho escravo no Brasil e preparam a transição para a mão-de-obra assalariada. As leis anteriores – como a Eusébio de Queiroz, Ventre Livre e Sexagenários – e a decisão de fazendeiros de empregar imigrantes europeus reduziram acentuadamente o volume de escravos.
Com isso, a Lei Áurea representou somente uma peça jurídica com a simples função de legitimar relações de trabalho já existentes na prática. “A lei acabou beneficiando só os senhores de terra, que preferiam o imigrante europeu ao negro”, afirma a militante.
Como o objetivo era oficializar o trabalho assalariado, a Lei Áurea se limitou a determinar o fim da escravidão, sem preconizar sobre os direitos de pessoas livres aos antigos escravos. “Que liberdade é essa?
Os negros permaneceram sem dinheiro, sem casa, sem nada”, critica Vânia. “Até o início do século passado, os negros eram proibidos de freqüentar as escolas. Isso é ser livre?”, questiona. Para a militante, esses aspectos do processo oficial de abolição da escravidão se refletem na vida do negro hoje. “O mercado de trabalho é um exemplo. Para o negro, não basta ter competência profissional. Os empregadores acreditam que por ser negra a pessoa está destinada a determinadas funções, que só pode exercer certos tipos de trabalhos”, afirma.
Desigualdades em números A herança social da escravidão e de uma abolição desinteressada na melhoria das condições de vida dos negros pode ser mensurada nos números do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Conforme a última PNAD (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio), a população de Mato Grosso do Sul era, em 2005, de 2.267.094 pessoas, sendo 50,5% brancas, 47,9% negras (pretas e pardas, nos termos do instituto) e 1,6% indígenas.
Apesar de numericamente inferior, a parcela negra apresenta os maiores índices quando se trata de indicadores negativos. Na época da pesquisa, a taxa de analfabetismo da população branca era de 6,6%, inferior a da “parda” (11,3%) e a da “preta” (14,1%).
Em números absolutos, a soma da população "parda" e "preta" analfabeta chega a 52,40 mil pessoas e a de branca, 18,77 mil. Isso significa que, em 2005, o número de negros analfabetos era quase três vezes maior que o de brancos em Mato Grosso do Sul.
A diferença entre negros e brancos no quesito freqüência escolar se alarga à medida que os estudantes avançam na idade. Até os 14 anos, o percentual de freqüência é semelhante entre os dois grupos, mas se distanciam após os 15 anos.
Do total dos brancos entre 15 e 17 anos, 83,3% estavam na escola em Mato Grosso do Sul no ano da pesquisa. O percentual de negros na mesma faixa etária era de 73,1%.
Dos brancos com 18 a 19 anos, 52,4% estavam matriculados; quanto aos negros, esse índice era de 32,1%. No intervalo de 20 a 24 anos, 30,5% dos brancos continuavam estudando; o percentual cai para 14,3% no referente aos negros.
A igualdade nos anos de estudo não resulta em igualdade de salários. Segundo a PNAD, os brancos que freqüentaram as escolas por apenas quatro anos recebiam a média de R$ 3,30 por hora de trabalho, mesmo valor do salário médio dos negros com cinco a oito anos de estudo. O salário dos negros com quatro anos de escola era de R$ 2,50.
O branco que estudou entre nove e 11 anos recebia R$ 5,50 a hora e o negro, com o mesmo tempo de estudo, tinha o salário médio de R$ 3,90 a hora.
A parcela dos brancos com 12 ou mais anos de freqüência escolar tinha ganho médio de R$ 14,60. Já os negros com o mesmo tempo de estudo ganhavam R$ 9,40 a hora.
Isso significa que o negro deveria trabalhar pouco mais de 15 horas para ganhar o mesmo salário recebido pelo branco em dez horas.
Dorjival Silva é jornalista (TRT/MT 1.228), Pedagogo e pós-graduando em Pedagogia Empresarial
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