Por LEONARDO AVRITZER
Aqui está, provavelmente, a raiz do atual problema no Brasil: a opinião pública não partilha as regras pelas quais se rege o sistema político
A ideia de opinião pública ou de espaço público supõe que os sistemas políticos modernos operam com uma noção mais ampla de representação do que a legitimidade da autorização dada pelo eleitorado. Ao lado da autorização pelos eleitores, que é a base do sistema representativo em vigor em todas as democracias contemporâneas, existe também um processo informal de formação da opinião pública sem o qual a democracia não pode sobreviver.
O papel da opinião pública é discutir questões políticas em geral, estabelecer novos padrões de moralidade política, avaliar e criticar os governantes, de forma tal que possa se estabelecer entre os representantes e os representados algum tipo de convergência nos momentos não eleitorais. Afinal, ainda que as eleições justifiquem os mandatos, quatro anos é um período longo, e há a necessidade de criar legitimidade entre os períodos eleitorais. Para tanto, é preciso que os representantes atribuam à opinião pública importância.
Caso contrário, continuará havendo representação, mas a sua legitimidade será baixa, e a democracia passará por aquilo que se convencionou chamar de "crise da representação política", um fenômeno certamente em vigor no Brasil hoje.
O Brasil é um país que teve uma formação tardia da opinião pública. A urbanização tardia, ao lado da persistência de níveis de escolaridade relativamente baixos, permitiu que o sistema político se acostumasse com um baixo grau de controle pela opinião pública e pela sociedade civil. Essa situação mudou com a modernização acentuada a partir dos anos 1950, com a constituição de uma sociedade civil mais organizada e com a redemocratização em 1985.
Hoje, o país tem uma sociedade civil com práticas políticas mais avançadas do que o seu sistema político, e a opinião pública percebe tal fato. Em pesquisa por nós realizada no ano passado para o livro "Corrupção: Ensaios e Crítica", colocamos a pergunta sobre quais são as instituições consideradas mais corruptas no país.
A Câmara dos Deputados apareceu em segundo lugar nesse ranking (com nota 8,34 em um máximo de 10), atrás apenas dos Legislativos municipais. Vale a pena mencionar também que instituições da sociedade civil, tais como ONGs e associações de bairro, foram consideradas sistematicamente menos corruptas do que as instituições políticas, situando-se em um patamar em torno de 6,32. q
Aqui está, provavelmente, a raiz do problema que o Brasil enfrenta: a opinião pública não partilha as regras pelas quais se rege o sistema político -e cabe a esse último se adaptar a essa nova situação. A frase recente de um obscuro deputado pelo Rio Grande do Sul ("Estou me lixando para a opinião pública") dá uma dimensão da dissociação entre sistema político e opinião pública no país.
Na medida em que a opinião pública vai refletindo novos padrões de moralidade política e cobrando mudança de comportamento por parte dos parlamentares, duas possibilidades aparecem: a adaptação do sistema político a esse novo padrão e uma reação no interior do próprio sistema político contra a opinião pública. Aí está a raiz do conflito em curso entre imprensa e sistema político.
A afirmação do deputado Sérgio Moraes (PTB-RS) expressa uma posição no interior do Congresso Nacional de desconsiderar a opinião pública. Essa posição se refletiu também no adiamento da proposta de reforma política ocorrido nesta semana. Ambas as atitudes expressam uma visão de autonomização do Parlamento em relação à opinião pública. Essa é uma posição equivocada, porque supõe que apenas a autorização eleitoral pode legitimar o exercício da representação.
É hora de a opinião pública reagir, e a maneira correta de reagir é por meio de uma ampla campanha pela reforma política. Para além de questões que estão na pauta, tais como financiamento público das campanhas políticas e lista fechada nas eleições proporcionais, é preciso tratar dos elementos que fazem os congressistas se sentirem um grupo privilegiado em relação à sociedade.
Entre os elementos dessa reforma devem estar o fim da imunidade para delitos civis cometidos pelos parlamentares (tal como o duplo atropelamento ocorrido no Paraná) e a retirada do poder dos parlamentares de julgar os crimes ou delitos cometidos por seus colegas. O Parlamento com certeza sairá reforçado de uma reforma política que institua a ideia de que a representação não implica privilégios, mas responsabilidades assumidas perante os eleitores e a opinião pública.
LEONARDO AVRITZER, 49, mestre em ciência política e doutor em sociologia, é professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). É autor de "A Moralidade da Democracia", entre outras obras.
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